A revisão das normas de prescrição sob uma perspetiva de direitos humanos afigura-se essencial para garantir que o tempo se não torne um aliado da impunidade.
Para o direito penal, a prescrição consiste num prazo após o qual um ilícito não pode mais ser punido. A finalidade da sua existência é garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais, impedindo que crimes antigos sejam julgados após um longo período, quando provas podem ter-se perdido e testemunhas, com o passar do tempo, poderem não estar disponíveis, tanto de memória, como de vontade, para depor. Na ótica dos direitos humanos, a limitação temporal para a responsabilização criminal pode representar uma barreira ao acesso à justiça, especialmente em casos de crimes graves.
Vários processos judiciais, de grande notoriedade, caducaram ao longo dos anos, resultando na extinção da possibilidade de castigar os envolvidos.
Um dos mais mediáticos foi, por exemplo, o processo dos hemofílicos contaminados. Na década de 80 do século passado, durante o mandato da então ministra da Saúde, Leonor Beleza, vários doentes hemofílicos foram contaminados, com o vírus da SIDA, através de transfusões de sangue infetado proveniente da Áustria. Em 1995, Leonor Beleza e outros 13 arguidos foram acusados de propagação de doença contagiosa com dolo eventual. Contudo, após vários recursos e decisões judiciais, num constante pingue-pongue entre a Relação de Lisboa e o Constitucional, este último considerou que os crimes haviam prescrito em fevereiro de 1997, levando ao arquivamento do processo sem julgamento.
O processo de João Vale e Azevedo foi outro. O ex-presidente do Sport Lisboa e Benfica enfrentou múltiplos processos judiciais por crimes como peculato e falsificação de documentos. Em janeiro de 2019, o Tribunal da Relação de Lisboa declarou a prescrição de crimes de peculato relacionados com desvio de fundos do clube, ocorridos entre 1998 e 1999.
Mais recentemente, foi o caso do processo BES/GES. Em que vários crimes foram investigados, no âmbito do colapso do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo. Em outubro de 2024, o Juízo Central Criminal de Lisboa declarou a prescrição de 11 crimes no processo BES/GES, dos quais três eram imputados ao ex-banqueiro Ricardo Salgado.
Outro exemplo foi o processo da Operação Marquês, o qual envolveu várias figuras públicas, incluindo o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, acusado de crimes como corrupção e branqueamento de capitais. Em abril de 2021, o juiz Ivo Rosa proferiu a decisão instrutória, deixando cair 172 dos 189 crimes inicialmente imputados, muitos dos quais por falta de provas ou prescrição. Apenas foi apenas pronunciado para julgamento por três crimes de branqueamento de capitais e por outros tantos de falsificação de documentos.
No direito penal, a regra geral é que todos os crimes prescrevem após um determinado período, conforme estabelecido no respetivo Código. No que respeita os crimes mais graves, eles prescrevem nos prazos de 15 anos (homicídio) dez anos (violação, corrupção ativa), cinco anos (furto simples) e dois anos (difamação).
Porém, os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de menores, bem como no crime de mutilação genital feminina, o procedimento criminal só se extingue, por efeito da prescrição, após a vítima perfazer 25 anos. Tal acontece por o ato de agressão se ter verificado na fase de vida em que a vitima ainda é menor de idade.
Defender os direitos humanos devia ser a vocação do Direito e, neste ponto de vista, a prescrição surge, aos nossos olhos, como uma falha da lei, e demonstra a máxima ineficácia do sistema judicial e judiciário em prosseguir com a punição dos agentes que praticaram crimes.
Os direitos humanos garantem o direito à verdade, à justiça e à reparação. No entanto, quando um crime prescreve, o Estado perde a capacidade de punir os responsáveis, privando as vítimas e as suas famílias do direito fundamental de verem a justiça ser feita. Essa situação é especialmente problemática em crimes de grande impacto social, tais como violência sexual e corrupção, onde as vítimas frequentemente enfrentam dificuldades para denunciar os agressores em tempo útil devido a medos, traumas ou obstáculos institucionais. Basta atentarmos na quantidade de crimes que ficaram sem condenação nos casos de pedofilia ocorridos na Igreja Católica.
Pergunto: como proteger então o direito da vítima da inércia da ação penal?
Havendo suspeitas de negligência ou inação do Ministério Público, os mecanismos de proteção no direito interno são de pouca eficácia, e passam pela queixa ao Procurador-Geral da República, ao Provedor de Justiça e às Comissões Parlamentares de Direitos Humanos, concretamente a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, junto da Assembleia da República.
A imposição de prazos curtos de prescrição favorece a impunidade e enfraquece a confiança das pessoas no sistema judicial. Os crimes exigem investigações complexas, onde a falta de meios humanos e tecnológicos só favorecem os agressores, e o tempo passa, e os inquéritos não avançam. Associado a fatores como a falta de acesso a informações, ameaças a testemunhas e dificuldades institucionais, é essencial uma mudança legislativa que permita prazos mais longos ou até mesmo a imprescritibilidade para crimes de extrema gravidade.
O Direito Internacional já reconhece a imprescritibilidade de crimes como genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, conforme estabelecido pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. No entanto, outros crimes que impactam profundamente os direitos humanos (a saber, tráfico de pessoas, violência sexual e corrupção) ainda possuem prazos de prescrição relativamente curtos em muitas legislações nacionais. A extensão desses prazos garantiria que as vítimas tivessem tempo suficiente para obterem uma resposta efetiva do sistema judicial.
A revisão das normas de prescrição sob uma perspetiva de direitos humanos afigura-se essencial para garantir que o tempo se não torne um aliado da impunidade. Onde a inércia reina a justiça sofre.
3 Mar 2025
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