Desde o ano passado que Miguel Milhão, que se opõe à despenalização do aborto, faz referências ao seu “dia da fecundação”, por considerar que a vida de uma pessoa começa nesse momento e não no nascimento. Conhecido na final da Taça de Portugal, o anúncio televisivo vai passar durante toda a semana nas três televisões generalistas, incluindo na final da Liga dos Campeões
Era intervalo da final da Taça de Portugal entre FC Porto e Sporting CP, os protagonistas recolheram aos balneários e, em casa, muitos terão ficado confusos com um estranho anúncio transmitido em direto na televisão pública. O spot publicitários apresentava imagens digitais, acompanhadas por uma batida eletrónica intensa, quase inexplicável. Entre espermatozoides espaciais, zombies bombardeados ou um rapper no topo de uma montanha — com a frase “celebrar o dia da fecundação” dita enquanto se lê “Parabéns Guru Mike Billions” —, a mensagem não era de fácil compreensão.
Mas Miguel Milhão, fundador e ex-diretor-executivo (CEO) da Prozis, fez o esclarecimento: “Só para dizer que o guru faz anos de fecundação! Vou pôr isto na TV para os meus amigos zombies celebrarem comigo?”, disse na rede social X (antigo Twitter).
O anúncio será, alegadamente, mais do que uma prenda de aniversário oferecida ao próprio e transmitida para milhões de pessoas. Tratar-se-á sim de um comentário do empresário sobre o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG). Após ter anunciado na mesma rede social que a publicidade ia passar durante a final da Liga dos Campeões, marcada para o próximo sábado na TVI, o Expresso confirmou com Milhão que as imagens serão transmitidas ao longo da semana nos três canais generalistas.
Apesar das críticas que o anúncio recebeu nas redes sociais, para Joaquim Dantas Rodrigues, advogado e professor no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL), não está em causa qualquer ilegalidade. Mesmo que exista uma mensagem politizada, “nós não temos qualquer tipo de legislação em que possamos dizer não a isto”.
“Isto está no âmbito de um Estado democrático em que consideramos o direito de liberdade de expressão, que é um bocadinho diferente do que se passou no Parlamento, porque aí roça alguns direitos constitucionais. Isto não parece que esteja em causa”, apontou o advogado, que acredita que vai ser preparada este ano legislação, a nível europeu, para regular “a utilização indevida de questões que estão ali entre a parte política e a parte privada do interesse de algum grupo”.
A legislação em Portugal “até é apertada no que chamamos de autorização de publicidade comercial, pelo menos na época eleitoral”, acrescenta Dantas Rodrigues. E aponta para a lei n.º 27/2007, a “lei da televisão”, e para a lei n.º 72-A/2015, que “regula a propaganda eleitoral através de meios de publicidade comercial”, como os precedentes legais em torno desta questão.
Considerando a lei de 2015, até se podia argumentar que o anúncio viola a lei por publicitar uma mensagem política após o início da campanha para as eleições europeias. No entanto, as imagens são de tal forma abstratas, e precisam de tanto contexto para serem assimiladas, que a direção comercial da SIC (do mesmo grupo de comunicação do Expresso) avaliou o anúncio através do processo normal e considerou que não existe caráter de ilegalidade, no âmbito do Decreto-Lei n.º 330/90 de 23 de outubro, que aprova o Código da Publicidade.
A publicidade termina ainda com uma referência ao podcast de Miguel Milhão e foi feita através da Prozis, o que a escuda ainda mais da aplicação da lei direcionada a propaganda política ou politizada. “Ele pode fazer publicidade ao podcast. Se o Miguel fosse candidato por um partido, seria sem dúvida ilegal e a Comissão Nacional de Eleições devia intervir”, esclareceu Dantas Rodrigues.
Escolha da palavra “fecundação” não é inocente. Porta aberta a mais anúncios do género
A publicidade paga por Miguel Milhão foi acolhida com reações mistas nas redes sociais. Embora tenham sido muitos os seguidores do diretor executivo da Prozis a elogiar a iniciativa, respondendo entusiasticamente às referências incluídas no anúncio, houve também quem adotasse uma posição diferente. O empresário foi acusado de aproveitar a sua fortuna para pagar anúncios auto-congratulatórios na televisão, e identificaram o intuito alegadamente anti-aborto da mensagem.
Miguel Milhão refuta que o objetivo do vídeo tenha sido provocar quem quer que seja ou que seja uma referência à sua posição sobre o aborto. “A primeira vez que apareci no universo foi no dia da fecundação. E é esse dia que comemoro. O dia de nascimento basicamente é quando saí de dentro da minha mãe. Mas eu já lá estava há muitos meses”, afirmou ao Expresso o empresário, de 41 anos.
Contudo, a verdade é que, em publicações no LinkedIn de há um ano e de há 11 meses, Milhão, que se autointitula como “guru”, explicou que ia “mudar a data” do aniversário e assumia que essa decisão tem como base a sua opinião sobre o aborto.
“Tudo começa na fecundação, por isso não se esqueçam de salvar os bebés que ainda não nasceram mas que já existem, assim como me salvaram a mim”, defendeu noutra partilha no LinkedIn. Há nove meses, Milhão reiterava esta associação entre o aborto e o que considera ser a “morte de bebés”, a propósito de uma notícia sobre uma enfermeira britânica que tinha admitido o homicídio de sete bebés (uma notícia que em momento algum fazia uma relação com a questão da IVG).
O advogado Joaquim Dantas Rodrigues considera que a falta de especificidade da lei atual sobre mensagens politizadas, transmitidas por entidades privadas, pode ser comparável ao que acontece com os chamados attack ads permitidos nos Estados Unidos, prevendo que “é possível que passe a acontecer” algo semelhante em Portugal.
“A nossa vida política está muito fracionada e a legislação que existe não é uma legislação que seja totalmente condenatória desses atos. Eu digo que, em muitas situações, o risco pode valer a pena para essas entidades. Nós estamos numa nova fase política e todo este tipo de questões podem ser trazidas. E esses anúncios, eu digo que é possível que apareçam mais. Não me admirava nada”, sublinhou.
A compra do espaço publicitário foi feita através da Prozis, cuja campanha foi gerida pela agência Nova Expressão. Numa publicação na rede social Facebook, a agência elogiou o empresário, a Prozis e o “spot de publicidade, no mínimo, original e surpreendente”.
Conhecido por posições polémicas desde 2022
O anúncio passado nas televisões remete para o podcast de Miguel Milhão, intitulado “Conversas do Karalho”, onde estão publicadas várias entrevistas a políticos conservadores (como André Ventura, Bruno Fialho do ADN ou o embaixador israelita em Portugal, Dor Shapira), influencers e outras figuras. Num episódio recente, um convidado, Afonso Gonçalves – líder de um movimento ultranacionalista “Reconquista”, que já foi identificado pelas autoridades – opõem-se a que as mulheres tenham direito ao voto – e Milhão, não esclarecendo se concordava, sugeriu apenas na partilha do conteúdo para “não julgar antes de ouvir”.
O fundador da Prozis – que também se autodenomina como “king” – não esconde as suas preferências políticas e é conhecido por defender a ilegalidade da interrupção voluntária da gravidez. Em 2022, quando tornou o seu podcast público, Miguel Milhão elogiou a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos de reverter a decisão que definia o direito constitucional ao aborto e, quando foi criticado nas redes sociais e nos média, defendeu-se argumentando com os lucros da Prozis em Portugal.
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